Maria João Cantinho

as manhãs

a luz do sol inunda-me as mãos

e canta-me a voz

baixinho

porque este é um milagre

da ordem de cada dia

mergulhado no silêncio

ser apenas assim

dobrada na voz que guarda

esse silêncio

que não é mudez de coisa nenhuma

mas uma filigrana

onde se guardam os sonhos

que não lembramos

e movo as mãos

quase imperceptivelmente

não quero quebrar o instante

onde se acolhe o acontecimento

Elegia

lembrar-te nesta manhã de verão

como foi breve a tua vida

que se cruzou com a minha

a vida é assim

este fulgor que adeja

nas encostas da morte

lembrar-te nos dias de verão

que passámos juntos

e trazias no olhar

uma sombra

que nem a luz do mar dissolvia

agora não há metonímia

nem catacrese que nos salve

deste desencontro no alvor do dia

é apenas a tua ausência

um risco que se adentra no céu

neste céu que é hoje

o que sempre foi

uma marca de ternura

entre nós

para sempre

Mordedura

Para Laurent Grison

talvez tenha sido nos canais de Sète

que a vida

esse mistério mais alto

nos uniu

como a marca de uma mão

rubra de sangue

e chamemos-lhe mordedura

não a da besta

mas a prisão suave do destino

nas mandíbulas de algodão do tempo

mordedura também a da memória

que se esconde nas fissuras da linguagem

um outro viés da eternidade

sempre a convocar-nos

sempre a chamar-nos

do fundo do coração e do poema

escrito no agora

manhãs de céu azul

e brisa suave

trazem lembranças da meninice

e de um rosto especial

manhãs de céu azul

em que abraçamos a vida

e nos deitamos nas dunas

junto ao mar

manhãs de céu azul

e do canto do sol

trazem-me a liberdade

e o dourado das searas

manhãs de céu azul

era assim o nosso verão

eterno como é eterna a luz

da nossa saudade

manhãs de céu azul

limpas como um sonho

a  alvorada nasce em ti

e tudo é simples e novo.

Ser

deixar que o vento

me aflore o rosto

e que o sol me ilumine o olhar

nestes momentos

não há solidão

basta-me ser

entre as notas de lilac wine

a carícia da voz de Nina

a vida desdobra-se

em ondas de ternura

onde sou

luz e música

estilhaço de luz

na manhã nascente

ouvir apenas

e ser

Maria João Cantinho nasceu em Lisboa em 1963. Viveu em Angola durante a infância e retornou a Portugal após o 25 de Abril. Estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e defendeu o seu doutoramento sobre Walter Benjamin. Colaborou e colabora com revistas académicas e de literatura. Publicou 4 livros de ansaio, 5 livros de poesia, um romance e dois livros de contos, que também estão publicados no Brasil. Foi galardoada com o Prémio Glória de Sant’Anna pelo livro de poesia «Do Ínfimo» e o grande Prémio de Ensaio do PEN pelo seu livro «Walter Benjamin: Melancolia e Revolução». A sua poesia está traduzida em castelhano, Italiano, francês, romeno e húngaro. É membro do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Críticos Literários.

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