as manhãs
a luz do sol inunda-me as mãos
e canta-me a voz
baixinho
porque este é um milagre
da ordem de cada dia
mergulhado no silêncio
ser apenas assim
dobrada na voz que guarda
esse silêncio
que não é mudez de coisa nenhuma
mas uma filigrana
onde se guardam os sonhos
que não lembramos
e movo as mãos
quase imperceptivelmente
não quero quebrar o instante
onde se acolhe o acontecimento
Elegia
lembrar-te nesta manhã de verão
como foi breve a tua vida
que se cruzou com a minha
a vida é assim
este fulgor que adeja
nas encostas da morte
lembrar-te nos dias de verão
que passámos juntos
e trazias no olhar
uma sombra
que nem a luz do mar dissolvia
agora não há metonímia
nem catacrese que nos salve
deste desencontro no alvor do dia
é apenas a tua ausência
um risco que se adentra no céu
neste céu que é hoje
o que sempre foi
uma marca de ternura
entre nós
para sempre
Mordedura
Para Laurent Grison
talvez tenha sido nos canais de Sète
que a vida
esse mistério mais alto
nos uniu
como a marca de uma mão
rubra de sangue
e chamemos-lhe mordedura
não a da besta
mas a prisão suave do destino
nas mandíbulas de algodão do tempo
mordedura também a da memória
que se esconde nas fissuras da linguagem
um outro viés da eternidade
sempre a convocar-nos
sempre a chamar-nos
do fundo do coração e do poema
escrito no agora
manhãs de céu azul
e brisa suave
trazem lembranças da meninice
e de um rosto especial
manhãs de céu azul
em que abraçamos a vida
e nos deitamos nas dunas
junto ao mar
manhãs de céu azul
e do canto do sol
trazem-me a liberdade
e o dourado das searas
manhãs de céu azul
era assim o nosso verão
eterno como é eterna a luz
da nossa saudade
manhãs de céu azul
limpas como um sonho
a alvorada nasce em ti
e tudo é simples e novo.
Ser
deixar que o vento
me aflore o rosto
e que o sol me ilumine o olhar
nestes momentos
não há solidão
basta-me ser
entre as notas de lilac wine
a carícia da voz de Nina
a vida desdobra-se
em ondas de ternura
onde sou
luz e música
estilhaço de luz
na manhã nascente
ouvir apenas
e ser

Maria João Cantinho nasceu em Lisboa em 1963. Viveu em Angola durante a infância e retornou a Portugal após o 25 de Abril. Estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e defendeu o seu doutoramento sobre Walter Benjamin. Colaborou e colabora com revistas académicas e de literatura. Publicou 4 livros de ansaio, 5 livros de poesia, um romance e dois livros de contos, que também estão publicados no Brasil. Foi galardoada com o Prémio Glória de Sant’Anna pelo livro de poesia «Do Ínfimo» e o grande Prémio de Ensaio do PEN pelo seu livro «Walter Benjamin: Melancolia e Revolução». A sua poesia está traduzida em castelhano, Italiano, francês, romeno e húngaro. É membro do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Críticos Literários.
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