todo o lirismo
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todo o lirismo é coisa de vime
coisa de fome
ladeada entrelaçada
entrançada coisa quentes de ânforas em mãos
como tu fazias
toda a homofonia (é)
coisa contrária
é sempre o declive mineral
das portas e dos lábios
e depois a
a boca sitiada de neve
como se se fosse a cada gesto
oleiro estelar por desmesura
com o nome o corpo pedaço negro
inteiro em volta
do som o credo
quando sabes
palavras são coisas minerais
coisas que nunca se
dizem sem
quando as imagens expõem melhor
o centro do odor
o sabor da pele
ao meio do peito
e ao meio do peito eu escrevi
os teus olhos
sabendo que a semente é
mais estéril dentro
da carne fria
ao meio da página da neve
sei que a mão prepara já a cada instante
por cima da boca a monda
dos canteiros
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outrora já dizias-me
nos dias do tempo sem tempo
o olor das oliveiras em flor
e eu ouvia campos nevados
em torno da cerca do peito
em torno da cerca dos teus braços
tinha tanto pavor da prata
sobretudo quando pensava em rios
a correr noite e mar
adentro
ou na inocente caligrafia dos anjos
lavrados sobre muros em ilhas perdidas
no meio do mar
e gravava na casca das árvores
o que soçobrava de uma tarde
inteira de silêncio
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sei que há mãos leitos certas palavras que dizem
como me fazes inteiro e denso
ao meio dos olhos
sobre o poço de enxofre do verão
a roldana de dálias um rosto
que se semeia em canteiros nevados
tília hortênsia dália lábio neve
tu quando o teu movimento era perfeito
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já não te dou um nome ou
digo um rosto água diversa do nome das fontes
agora
é quase quase mesmo de noite e alguém
segura a mão por cima do cesto de vime
com a primavera ou o mar azul do meio-dia por baixo
como se fosse uma inteira galáxia de perfume
o teu dor na nuca
porque alguém retém também
a inocência cercada no rosto intacto
e nos búzios a incandescência do perfume
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é alguém que sabe na cal
respira sempre a sombra dos olhos
dos animais
nos trilhos do calor
a viver tantas vezes de fome e sol a prumo
alguém que sabe
alguém que me faz
os rumos obsoletos em dias
mitológicos cor de ouro cor de vime
alguém que me segreda à refeição
a trança cor de azeite
(alguém) como se de trova ao peito
alguém dissesse
tudo o que não posso ouvir
e as vozes nos jardins à chuva
em áleas de ulmeiros a construir as conclusas imagens
tu a estenderes os teus cabelos azuis
entre delos e egina – sim
certas imagens podem salvar –
para os náufragos (e para mim)
és alguém me faz homófono de
dedo fenda ferida ou casa no meio do mar
à meia-noite
alguém que me faz coisa aberta de lábios em casas
alguém que me faz
canção que conduz ao centro
homófono de certeza
(junto ao peito)
alguém que me diz o mundo é
palimpsesto frio em que me deito
a cada sol que cai
//
e quando por dentro do sangue
acontece a distância perfeita
de dois nomes
na terra acabada de lavrar
floresce a sombra dos teus cabelos
o odor da tua boca –
és (como se) alguém que semeia o som em leira
de lume
(és como se áfricas me aquecessem o sangue) –
levo-te assim incêndio de pálpebras
alguém como alguém que sente
a terra
como alguém/coisa
vertical
de ira e lira ao peito
levo o nome como
aquele que é e que vai pela oblíqua primavera da veia
em torno do dorso dormente do prazer do sangue
alguém que vai pela vontade mais pura
de certos nomes animais simplíssimos por singeleza e perfume
como se em abissínias de sonho me aquecessem o sangue
digo nomes
como se alguém de terra quente à altura do peito
digo a poesia – ou inclusive um corpo – é
como se
nunca ninguém soube o que quer dizer
um dedal em flor
diria é
como se em nomes se me adormecesse o sangue
sempre
de súbito
o mundo sem reverso

Luís Felício
[Tavira, 1982]
Poeta
Vencedor do Prémio Cidade de Almada (2011) e do Prémio Edmundo Bettencourt, Cidade do Funchal (2011). Com formação em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi co-editor e diretor da revista literária Cràse. Publicou também textos sob o pseudónimo de Ruy Narval na revista Sin_ismo: projecto imaginário e heterotópico, da Faculdade de Letras do Porto, e no DN Jovem (desde 2002).
Com várias distinções literárias, foi vencedor do concurso Jovem Criador, organizado pela Câmara Municipal de Aveiro, em 2007 e 2008, e selecionado para a coletânea nacional Jovens Escritores, do Clube português de Artes e Ideias, em 2008, 2009 e 2010.
Bibliografia Ativa:
- Assim também um corpo (poesia), 2009, Edições Livro do Dia
- O som e a casa (poesia), 2010, Edições Artefacto
- A sombra dos lugares (poesia), 2012, Arcadia Editores
- O cânone contínuo (poesia), 2013, Edições Glaciar
- A noite à porta (poesia), 2021, Editora Exclamação
- Tríptico (poesia), 2025, Editora Exclamação
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