Luís Felício: todo o lirismo

todo o lirismo

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todo o lirismo é coisa de vime

                        coisa de fome

ladeada entrelaçada

entrançada coisa quentes de ânforas em mãos

como tu fazias

toda a homofonia (é)

                              coisa contrária

é sempre o declive mineral

das portas e dos lábios

e depois a

a boca sitiada de neve

como se se fosse a cada gesto

oleiro estelar por desmesura

com o nome o corpo pedaço negro

inteiro em volta

                            do som o credo

    quando sabes

palavras são coisas minerais

coisas que nunca se

                             dizem sem

quando as imagens expõem melhor

o centro do odor

                                  o sabor da pele

                      ao meio do peito

e ao meio do peito eu escrevi

os teus olhos

sabendo que a semente é

                                  mais estéril dentro

                                                  da carne fria

ao meio da página da neve

sei que a mão prepara já a cada instante

por cima da boca a monda

dos canteiros

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outrora já dizias-me

nos dias do tempo sem tempo

o olor das oliveiras em flor

e eu ouvia campos nevados

em torno da cerca do peito

em torno da cerca dos teus braços

tinha tanto pavor da prata

sobretudo quando pensava em rios

a correr noite e mar

         adentro

ou na inocente caligrafia dos anjos

lavrados sobre muros em ilhas perdidas

no meio do mar

e gravava na casca das árvores

o que soçobrava de uma tarde

inteira de silêncio

//

sei que há mãos leitos certas palavras que dizem

como me fazes inteiro e denso

ao meio dos olhos

sobre o poço de enxofre do verão

a roldana de dálias um rosto

que se semeia em canteiros nevados

tília hortênsia dália lábio neve

tu quando o teu movimento era perfeito

//

já não te dou um nome ou

digo um rosto água diversa do nome das fontes

                 agora

é  quase quase mesmo de noite e alguém

segura a mão por cima do cesto de vime

com a primavera ou o mar azul do meio-dia por baixo

como se fosse uma inteira galáxia de perfume

o teu dor na nuca

porque alguém retém também

a inocência cercada no rosto intacto

e nos búzios a incandescência do perfume

//

é alguém que sabe                    na cal

                            respira sempre a sombra dos olhos

dos animais

nos trilhos do calor

a viver tantas vezes de fome e sol a prumo

alguém que sabe

alguém que me faz

os rumos obsoletos em dias

mitológicos cor de ouro cor de vime

alguém que me segreda à refeição

a trança cor de azeite

(alguém) como se de trova ao peito

alguém dissesse

                         tudo o que não posso ouvir

e as vozes nos jardins à chuva

em áleas de ulmeiros a construir as conclusas imagens

tu a estenderes os teus cabelos azuis

entre delos e egina – sim

certas imagens podem salvar –

para os náufragos (e para mim)

és alguém me faz homófono de

dedo fenda ferida ou casa no meio do mar

à meia-noite

alguém que me faz coisa aberta de lábios em casas

alguém que me faz

canção que conduz ao centro

homófono de certeza

(junto ao peito)

alguém que me diz o mundo é

palimpsesto frio em que me deito

a cada sol que cai

//

e quando por dentro do sangue

acontece a distância perfeita

               de dois nomes

na terra acabada de lavrar

floresce a sombra dos teus cabelos

o odor da tua boca –

és (como se) alguém que semeia o som em leira

de lume

(és como se áfricas me aquecessem o sangue) –

levo-te assim incêndio de pálpebras

alguém como alguém que sente

                     a terra

como alguém/coisa

            vertical

            de ira e lira ao peito

            levo o nome como

aquele que é e que vai pela oblíqua primavera da veia

em torno do dorso dormente do prazer do sangue

alguém que vai pela vontade mais pura

de certos nomes animais simplíssimos por singeleza e perfume

como se em abissínias de sonho me aquecessem o sangue

digo nomes

como se alguém de terra quente à altura do peito

digo a poesia – ou inclusive um corpo –  é

como se

nunca ninguém soube o que quer dizer

um dedal em flor

diria é

como se em nomes se me adormecesse o sangue

sempre

de súbito

o mundo sem reverso

Luís Felício

[Tavira, 1982]

Poeta

Vencedor do Prémio Cidade de Almada (2011) e do Prémio Edmundo Bettencourt, Cidade do Funchal (2011). Com formação em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi co-editor e diretor da revista literária Cràse. Publicou também textos sob o pseudónimo de Ruy Narval na revista Sin_ismo: projecto imaginário e heterotópico, da Faculdade de Letras do Porto, e no DN Jovem (desde 2002).

Com várias distinções literárias, foi vencedor do concurso Jovem Criador, organizado pela Câmara Municipal de Aveiro, em 2007 e 2008, e selecionado para a coletânea nacional Jovens Escritores, do Clube português de Artes e Ideias, em 2008, 2009 e 2010.

Bibliografia Ativa:

  • Assim também um corpo (poesia), 2009, Edições Livro do Dia 
  •  O som e a casa (poesia), 2010, Edições Artefacto
  • A sombra dos lugares (poesia), 2012, Arcadia Editores
  •  O cânone contínuo (poesia), 2013, Edições Glaciar
  • A noite à porta (poesia), 2021, Editora Exclamação
  • Tríptico (poesia), 2025, Editora Exclamação

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