Pessoa ao Contrário
Há uma fotografia que a guarda, como o rio guarda o reflexo dos pássaros que sobrevoam as suas margens. Nessa completude rara, conseguiu granjear o burburinho da sua mente. É ela, somente ela, no centro do quadro: estática, majestosa, consciente de que é admirada, assim permanece, nesse intervalo de tempo, deitada sobre um campo de azedas, de barriga para baixo, com as pernas cruzadas no ar. ⎯ São pormenores dispersos, botas de salto em agulha, forradas a fazenda cinza, calças de ganga escura e uma camisola de lã, no mesmo tom que as botas, mas não é isso que a distingue, nem os cabelos negros em contraste com a pele de porcelana e os lábios vermelhos. Isso faz somente com que alguém diga, “Esta mulher é bela.” ⎯ O que a eterniza, naquele instante, é a forma como prende entre os dentes fechados a azeda de pétalas amarelas, como se dissesse, “Admira-me, só porque estou aqui!”
Sou a sua versão masculina. Os nossos rostos assemelham-se e confundem-se, mas o meu é bruto e quadrangular. Ao longo das faces, brotam fios grossos como arame que se encodeiam nos meus poros, criando pústulas de pus. Nessa massa acidentada, não sobrevive um traço, mas um amontoado de línguas carnudas e onduladas, que retiram a forma às coisas ⎯ um pedaço quadrangular de carne assente num pescoço cúbico que encaixa num par de ombros largos.
Nos últimos tempos, ganhei coragem e disse-lhe que sou uma pessoa ao contrário. Que bastava tirar a casca que me envolve e pressionar, com a ponta dos dedos, a superfície da pele para se revelar a criatura presa do outro lado. Confessei-lhe exaltado que me imaginava a fazê-lo, a excisar a carne com o gume de uma faca e a tirá-la como um disfarce, encontrando alguma verdade no reflexo do espelho. Ao ver a minha mãe voltar-se de costas, enquanto esbracejava, com olhos de repulsa, ainda abanando a cabeça, tentei explicar-lhe com palavras mais terrenas que as coisas eram assim desde menino, que de tarde me sentava debaixo da mesa do jantar a descosturar a barra da sua saia, imaginando o que seria livrar-me do meu corpo quadrado e repugnante.
Nesse esconderijo só meu, pensava como era boa a vida das lagartixas. Pensava que tinham muita sorte por se poderem livrar da sua cauda e, em pouco tempo, reaver uma versão sua. Isso era o que magicava durante horas, estivesse em casa, na escola, ou no jardim a experimentar um pouco das minhas palavras nas lagartixas que abundavam por ali.
“És um anjo, bondoso e delicado, cheio de boas intenções”, era o que dizias ao meu ouvido antes de eu adormecer, “mas tens de corrigir esse andar de menina, o que vão pensar de ti na igreja? E os teus amigos, o que dirão? A forma como empinas o mindinho ao segurar a chávena de chá também é algo a corrigir, deus proíbe que os meninos tenham jeitos de menina, assim vais parar ao inferno!”
De noite, acordava com o corpo desordenado. Os pulmões no lugar do coração, o estômago na cabeça, com as ideias revoltas, a fermentar como comida estragada. Sabia que te desiludiria se descobrisses o que eu era. E, desde cedo, o mesmo sonho se repetiu.
Começava por ouvir os teus passos a cair nas tábuas do soalho ao longo do corredor. Os teus passos ocos a reverberar nas paredes recortadas pelas sombras alaranjadas do entardecer. Aos poucos, tentava abrir os olhos pesados de sono. Repetia-se sempre tudo da mesma forma. Com as pálpebras ainda pesadas, via a tua silhueta aproximar-se entre o recorte das pestanas. E quando estavas mais próxima, a baforada da tua respiração fazia-me despertar. Estavas já diante de mim, com os olhos vermelhos como sangue, a apertar entre os dedos tensos e suados a almofada com que preparavas a minha morte. Por mais que te tentasse afastar, a tua sombra ia cobrindo, parte por parte, o meu corpo, até tapar-me como um lençol negro. Pedia-te que me deixasses viver, pedia-te por tudo que não o fizesses. Mas por mais que insistisse nessa ideia, poupar-me era para ti uma afronta. Elevando as mãos, pedias-me desculpas, benzias-te rapidamente em nome do pai, do filho e do espírito santo e, sem olhar para mim, empurravas contra os meus lábios escancarados a almofada, arqueando ainda mais os teus dedos de aranha. Por mais que eu te tentasse afastar, tu eras adulta e eu criança, tu eras forte e eu fraco, e bastava que soltasse alguns arquejos aflitos para me esvaziares por completo os pulmões, deixando-me ali a dormir no meu corpo silente.
Vejo tudo como se fosse agora. Sou uma pessoa ao contrário. Uma rapariga no corpo de um rapaz. A minha pele organizou-se nesse sentido, criando uma casca de linhas rectas, pontiagudas, que teimam nessa configuração, enquanto do avesso guardo uma figura redonda e delicada. O meu invólucro mente sobre mim. Quero livrar-me dele, antes que o meu pensamento se encarquilhe e, nessas rugas secas, aperte os meus órgãos, sugando toda a água que guardo cá dentro, até me tornar num pedaço longo de pele ressequida.Lá fora, nesta cidade de avenidas extensas, onde mesmo os habitantes mais antigos se perdem, passeiam mulheres vestidas de homem, homens vestidos de mulher com camadas grossas de maquilhagem no rosto, purpurinas coloridas nas pálpebras que só enaltecem mais os seus traços embrutecidos. Tenho treze anos e não conheço outra forma de combater a tua tirania senão berrar que quero fazer do meu corpo o que quero, amar quem eu quero, e conhecer-me a mim próprio, por mais que isso te perturbe e revolte. Não encontro melhores palavras para expressar a minha dor adolescente. Dizes que uma mãe não dá à luz um filho para que ele retalhe o seu corpo, o reconfigure como lhe apetece, tornando-se irreconhecível, fora do propósito primordial. Se o fizer, é como se morresse, é como se me estivesse a suicidar, ainda por cima um suicídio consciente, não serei mais a mesma pessoa, como quero que depois me trates da mesma forma? Não conseguirás olhar mais para mim sem matutar nisso a todo o instante, passarás por mim na rua e não me falarás, a mim já não me conhecerás.
Ao Domingo, levas-me ao padre para que me convença a mudar de ideias. Sentamo-nos os três nos bancos corridos de madeira que ocupam a nave lateral da igreja. Quero mudar o meu corpo, tornar-me mulher, é o que dizes, sofres por perder o teu filho, nenhuma mãe merece uma traição como essa. Alguma coisa deve ter deus a dizer sobre isso. Mas não escutas, a tua língua continua a dedilhar o palato como a agulha de uma máquina de costura. “Pode o homem mudar a sua criação, assim sem mais?”, continuas, que te responda a autoridade de deus na terra, que te dê uma direcção, é isso que ali buscas. Quando lhe permites que fale, o padre diz que os tempos são outros, no passado diria que se trata de uma blasfémia, que isso me faria arder nas labaredas do inferno, mas as coisas andam às avessas, à procura de uma forma definitiva, os assuntos do corpo passaram a dizer respeito à própria pessoa.
Escorrem-te lágrimas grossas pelo rosto, à medida que me arrastas pela avenida principal da cidade. A desilusão nos tempos assoma-se ao teu pensamento. — Gosto de passar nesta avenida, todos os prédios estão pintados em tons pastel. Quando era mais pequeno, dizias que pareciam bolas de gelado, nestas variações muito pálidas de rosa, azul e amarelo. — Agora não te interessam as cores, berras ao meu ouvido que sou uma criança, não sei nada dos assuntos do corpo, todos queremos ser outra coisa, tudo menos o que é suposto sermos. Depois baixas o tom e com uma voz lamuriosa dizes-me que mesmo tu beijavas às escondidas uma vizinha tua, mas nunca pensaste em mudar o corpo, era somente o desejo de transgredir, a voz de satanás a sussurrar-te aos ouvidos, devemos seguir o caminho de deus.
Solto-me das tuas mãos ásperas, enquanto esticas os olhos na minha direcção. Os teus olhos arrancados parecem perseguir-me enquanto corro pelas avenidas da cidade extensa. Escondo o rosto dentro do casaco para não sentir a tua cisma. As minhas pernas dobram-se e voltam a dobrar- se sem medo de cair, o rosto mais adiante do que o corpo a rasar as pedras da calçada. Dou por mim nas ruas tortuosas das colinas, rodeado de prédios atarracados, com manchas de musgo nas fachadas empedradas. A única vez que estive aqui foi no aniversário de um colega de turma, de bar em bar, até adormecer por cima do meu vómito, num banco do miradouro.
É tarde, as ruas estão escuras. Pergunto-me quantas horas terão passado. Se em todo este tempo continuei a correr ou se estive aqui parado sobre os joelhos. A minha respiração está calma e o coração bate ao ritmo brando do descanso, por isso suponho que me tenha detido aqui por algum tempo. Ao levantar o rosto dos joelhos, as mãos grossas de um homem atiram-me contra a parede, “Maricas”, é o que diz enquanto tento soltar-me. Suplico que me deixe ir, “Vieste à procura de quê maricas? Vou-te mostrar!” Com os seus braços robustos, o homem desconhecido derruba-me na calçada e encosta-me com os seus punhos a uma parede que se esboroa em camadas finas de cal, cada vez que me tento esquivar dele. Um fio cortante perpassa a minha coluna, sinto dor e prazer. É a imagem de uma mão a segurar um ovo e a partir a sua casca sobre a minha nuca. A gema e a clara a misturar-se numa pasta viscosa. O ovo é perfeito e a forma como se parte é perfeita, com a casca esmigalhada em pequenos cacos que se despegam dos dedos. Quero retalhar o corpo, abrir fissuras na pele. A dor de cada golpe acalenta a vontade de morrer.
Arrasto-me pelas ruas da cidade. As pessoas que passam por mim querem-me atacar, é o que penso. Todas me querem atacar. Sustenho a respiração e escondo-me nas esquinas dos prédios. Parar de respirar torna-me invisível, ninguém me toca, é o que a minha mente me diz.
“Onde estás tu?”, pergunto à medida que vagueio pelas ruas sujas das colinas. Toco nos meus braços para ter a certeza de que continuo a existir. Sou qualquer coisa entre a matéria e ausência. Abri a boca e devorei-me a mim próprio. É como se me movesse acima das coisas, numa certa transparência, a realidade esfarela-se em ínfimos grãos.
Ao chegar à porta do meu prédio, as chaves de casa caem aos meus pés. Olho à minha volta para ter a certeza que não me vão atacar e subo as escadas, arrastando os joelhos nos degraus de madeira podre e degradada até ao último andar onde vivo. Deixo a pele raspar na madeira, abrir-se em fendas. Isso faz-me quebrar num riso eléctrico. Estás no teu quarto com a porta entreaberta. Ouves-me chegar, mas não dizes nada. O meu corpo e a cama, a cor da pele e a brancura dos lençóis, órgãos palpitantes dentro de um saco que é o corpo.
Quando abro os olhos, já estás sentada ao meu lado. Perscrutas as nódoas negras e as feridas abertas no meu rosto. Não sei qual é o feitiço que te faz aparecer e desaparecer. Talvez adormeça, por instantes, e isso crie a ilusão de que a realidade se repita diante de mim. A verdade é que não estás lá e, no momento seguinte, inclinas-te sobre a minha cama, encostando um pedaço de algodão ensopado em álcool às partes magoadas do meu rosto. Com uma bacia e um pano velho nas mãos, limpas cuidadosamente as minhas feridas. Ouço o marulhar das águas dentro da bacia presa entre o teu cotovelo em arco e o torso, enquanto cumpres o teu ritual de purificação. Dizes-me, “É tudo isto o que atrairás ao tornares-te num homem mulher, eles virão por ti, como cães farejadores, com o seu desejo perverso, prontos a abocanhar-te, viverás num espaço confinado, somente com pessoas semelhantes a ti, pessoas que vivem com medo, o resto do mundo fechar-se-á como uma concha e, quando notares, estarás só, mesmo se tiveres pessoas à tua volta, será como se estivesses fechado num quarto de espelhos, eles serão o teu reflexo e tu o deles.”
Enquanto tento suportar o ardor do álcool nas minhas feridas, as tuas palavras reverberam nos meus ouvidos como uma litania. “Tudo isto está a suceder porque nunca tiveste um pai, cresceste rodeado de mulheres, pobre de ti, seria o mesmo comigo, os acasos da vida tolhem-nos os caminhos, se o teu pai não nos tivesse abandonado, terias tido um exemplo a seguir, um homem que te guiasse neste caminho espinhoso que é a vida, em cristo jesus, eu te ajudarei, a tua mente voltará a erguer-se sã e salva e levarás uma vida abençoada, não há limites para o perdão de deus.”
Tenho o corpo dorido, é teu desejo macerar o meu pensamento. No meio dos nós, não consigo destrinçar o que vem de mim e que me impões como herança. Peço-te que saias, que deixes somente o pano e a bacia no quarto, farei o resto do trabalho sozinho. Reitero novamente o meu pedido para o caso de não teres ouvido, é para me deixares só. Com as mãos encolhidas para dentro do robe, acabas por afastar-te pela porta, deixando na mesinha de cabeceira um copo de leite para beber antes de adormecer, assim o dizes. Só carregas contigo as tuas maldições.
Não entra luz pelas persianas do quarto. Vou buscar mantas e penduro-as no varão para tapar as últimas frestas que persistem. Perco a noção do tempo. É dia noite, noite dia. Não sei há quantos dias estou fechado no quarto. Talvez possa contar os minutos pelos nós dos dedos, seguir uma lógica só minha. Abro a gaveta e tiro um maço de cigarros. Não sei se tenho lume, procuro atrás das roupas, está escondido no bolso interior de um casaco. É um cigarro atrás do outro, não durmo, não me alimento, sei que estou vivo pois oiço os pulmões chiar. Tento levantar-me. Saio da cama com uma perna a menos, também me parece faltar um braço.
Ainda por cima, falta-me o braço do lado oposto, o que me dá uma sensação de desequilíbrio. Nesse movimento trôpego, a tentar sentir menos o peso do braço intacto a baloiçar de um lado para o outro, bebo quase de um só gole o copo de leite azedo que está sobre a mesinha de cabeceira esquecido há alguns dias. Não reconheço esta ira que me manda tudo destruir, lanço o copo contra a parede e com um caco onde se acumula uma bolsa de leite, abro um golpe na minha perna e vejo a mistura que se forma na sua brancura com o vermelho do sangue. Como é possível não sentir nada enquanto um golpe profundo se abre na carne?
As palavras que disseste contra o meu pai rugem dentro de mim. Sinto pena de mim próprio. Sou uma vítima. Para meu agrado, sou uma vítima. Culpando-o, prorrogo a minha verdade, baralho os caminhos para não chegar a lado nenhum. É como aprendo a silenciar o desejo de retalhar o corpo só mais um dia. Nessa culpa alheia, pelo menos sobrevivo. Vou adiante, sem romper com nada, escuso-me em vez de reagir. Por culpa do meu pai, sou homem mulher. Isso nunca ele virá corrigir, como nunca veio emendar nada do que deixou mal-feito. Nem sequer se deu ao trabalho de deixar um rosto, um corpo, uma voz, tudo isso rasurou desde muito cedo, não há quem antagonizar, ficou apenas uma moldura humana, os cabelos e as orelhas. No lugar do seu rosto, uma mancha branca como estuque arrancado.
Ao perceber a ira que me consome, a minha mãe entra de mansinho no quarto, com um prato de sopa pelas mãos. Ligas a televisão no canal onde costumas ouvir as palestras da igreja, urdindo o teu plano. Enquanto me recosto para acomodar o prato de sopa que não pedi, preparo-me, num gaguejo de inquietação, para te dizer que não suportarei o brilho do ecrã, nem o burburinho tiritante dos embaixadores de jesus cristo. Mas colocas os teus dedos sobre os lábios, mandando-me silenciar. Eu não consigo refutar a desenvoltura feroz com que impões a tua tirania. Sou fraco, incapaz, diante do homem de cabelos brancos e gravata demasiado apertada que aponta na minha direcção, sou demasiado fraco. É como se fosses tu, ele fala para uma plateia de jovens à procura de respostas para a vida. E, com uma paciência ruminante, explica que a carne é a nossa maior inimiga, “Isso é o que mais martiriza a nossa existência!” As pausas que acalentam as suas frases conferem-lhe a habilidade de manter a audiência interessada, são pausas dramáticas, de alguém que conhece os palcos. “É o que digo, um drama vivido por muitos, mas o amor a deus deve estar acima de tudo.” A minha mãe acena com a cabeça e dá-me a mão, enquanto me tento afastar dela, “com abnegação”, mais uma pausa dramática, “temos de superar os nossos desejos, o nosso apetite desenfreado que quer satisfazer a carne, mas nos angustia, fere, por interferir com o espírito, é como uma doença, uma possessão demoníaca!” Os olhos daquele homem muito branco, de gravata apertada, flamejam de vivacidade, “há quem seja eunuco por natureza, há pessoas que se castram por vontade própria, muitos eram assim, mesmo nos tempos da bíblia”, a voz abranda, tornando-se complacente “mas depois mudaram, renunciaram-se a si mesmos, negaram os seus desejos infames e tomaram sobre si a sua cruz, seguindo a deus. O propósito de deus é que ninguém seja assim, foi o pecado de Adão que se prolongou na humanidade.”
Ouvindo estas palavras, aproximas-te de mim com os olhos manchados de lágrimas e suplicas que renuncie ao impulso de mudar o corpo e amar outros homens. Enquanto me tentas evangelizar, quero pertencer-te. Desejo igualar-te. O teu rosto, os teus traços fascinam-me, quero romper a tua carne e apoderar-me da casca que te envolve, tomando todas as tuas formas. Digo que não te posso prometer nada, que tentarei ser o filho que desejas, mas não te posso prometer nada.
Enquanto me tentas mesmerizar com mais súplicas, as palavras do pastor ressoam nos meus ouvidos, “Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? …Nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou activos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros, herdarão o Reino de Deus. …Vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus. Assim diz I Coríntios 6:9-11.”
Quero agradar-te. Ser perfeito para ti. Sentir a brandura do teu amor. Por um instante, desejo lavar-me dos pecados da carne, santificar-me, ser uma pessoa impoluta e andar assim, a deslizar sobre as coisas.
À noite, um burburinho cresce nos meus ouvidos. São muitas vozes, passos a ecoar no pavimento assoalhado da casa. Espreito pela ombreira da porta e vejo mulheres e homens com bíblias e livros de cânticos debaixo dos braços. Um homem com um manto branco abraça-me como se me conhecesse há muito tempo. À medida que me afasto, recuando de novo para quarto, reparo nos seus olhos azuis incandescentes, vazios como pratos. Tento resguardar-me no quarto, mas quando me volto para o lado, estão outras pessoas lá dentro. São mulheres que organizam travessas de doces e salgados sobre a minha cama, outros sacodem toalhas de mesa à janela. A casa é pequena, não sei como passaram por mim, como me contornaram, no instante em que me afastei do homem de manto branco. Tenho de me esconder, mas não há para onde escapar, penso. Talvez possa desaparecer para dentro das minhas roupas. Talvez possa enfiar a cabeça dentro do colarinho do casaco e os braços dentro das mangas e assim ninguém me verá. Serei somente um amontoado de tecidos em movimento. Forço a minha passagem entre os cotovelos dos fiéis fervorosos para perguntar à minha mãe ao que vêm todas estas pessoas. Mas ela está no centro da sala, com os braços abertos como asas, pronta a dar as boas-vindas a todos.
O espaço diminui a cada sopro seu. Os copos, os pratos, os móveis, por outro lado, aumentam de tamanho. Sinto-me mais uma vez fraco diante dela. Baixo os olhos, a cabeça. Os ombros descaem para a frente, como se me estivesse a defender de alguma coisa. Estou sempre a defender-me de um arremesso qualquer. Fui usado pelas mãos de outro homem, após o seu aviso aziago. Pergunto- me se a minha mãe saberá ler todo o meu destino desde o tempo do útero. Penso, naquele instante, que ela é boa para mim, assim tento pensar, que apenas me tenta murar de protecção. Mas essa sua protecção retira-me poder. Sinto-me subjugado à sua tirania.
Eu quero que ela me ame, que me veja como um bom filho, à altura dos seus ideais de perfeição. Quero merecer o seu amor e, por isso, submeto-me. Oro com os teus seguidores, com estas pessoas que seguem a deus, para que o nosso pai santíssimo me faça gostar do meu corpo, que me cure da confusão virulenta da mente. Abro a tampa da cabeça e vejo muitas mulheres a vaguear lá dentro, mulheres com os seios redondos e lábios carnudos que me chamam para devorá-las. Mas quando lhes toco, desço o olhar, e encontro entre as suas pernas falos gigantes que se alongam pelas suas pernas. Dos falos, nascem rosas brancas e azuis e quase consigo cheirar o seu perfume apodrecido pelo calor que se acumula na sala. Quero provar a seiva das suas pétalas, perder-me nesse gosto putrefacto.
O homem de manto branco impõe as mãos sobre mim. Ordena a todos os demónios e potestades que me libertem, que me parem de atazanar com as suas ideias pecaminosas e se verguem ao poder de deus. Sinto a sua energia sombria a descer sobre o meu corpo, os braços e as pernas subitamente dormentes. Instantes depois, percebo que estou caído no chão, sob os olhos alucinados dos outros fiéis.
“Antes de eu te formar no ventre, eu já te conhecia”, ouço a voz de deus a ecoar dentro de mim.
Ao deitar-me na cama, são mãos que me procuram, uma das fiéis deita-se ao meu lado. Encara-me em silêncio, à espera que seja eu a questionar a sua presença ali. Por fim, diz que está ali para me salvar, é solteira e crente em deus, a minha mãe contou-lhe muito antes como ando atormentado e emocionou-se ao conhecer a minha história. Para ela, dar-me o seu corpo é um pecado menor do que a transfiguração demoníaca que preparo.
Observo-a em silêncio, é uma mulher alta, morena, com a pele da cor da terra, ombros largos e maciços. Tem uma beleza rude, sem delicadeza, os lábios grossos e arqueados confluem nessa ideia.
“Vou-te guiar”, diz assim. “É só deixares-te guiar e segurares nas minhas mãos, deixando-as vaguear pelo meu suor.” Digo-lhe que não a quero ali, estou cansado das artimanhas da minha mãe, impedem-me de tomar uma direcção. Como se não me escutasse, ela segura as minhas mãos e faz com que deslizem pelos seus ombros robustos. “Sou de todas a que tem mais pecados”, sussurra-me ao ouvido. “A tua mãe não sonha, nem lhe deves contar, mas o meu passado rasou as veredas da obscuridade, eu estive para me perder nos maus caminhos, e se estou aqui é pelo amor incomensurável do nosso pai santíssimo.” Canso-me dos seus rodeios, não sei onde me leva, se é mais um ardil daquele fanatismo, o melhor é sair, é o que lhe digo, que saia do meu quarto de uma vez por todas. Confessa-me que antes foi um homem, passou mais de trinta anos sentindo-se um homem preso no corpo de uma mulher, não noto porque os médicos esculpiram o seu nariz, ajudaram-na a livrar-se da barba, rasparam-lhe a maçã de adão, e até cavaram um orifício onde antes pendia o falo.
Com estas palavras, ela põe a minha mão entre as suas pernas para averiguar a perfeição do trabalho, deixando-me senti-la humedecia.
Enquanto me levava naquele encanto seu, continua. Desde menino só queria tornar-se mulher. Não conseguia falar disso a ninguém e nunca os pais souberam. Passou os últimos anos a inventar histórias ao telefone, a saltar de morada em morada, de país em país, num enredo ficcional, para não os confrontar com essa ideia. Ainda não o fez, nunca os confrontou. Não sabe se algum dia o fará. Foram meses a acordar sobre a cama do hospital, a aperfeiçoar cada traço, até já não se reconhecer ao espelho. Por muito tempo, evitou o seu reflexo, era tomada de muito sustos, chegou a desenhar com o lápis dos olhos a barba e os traços anteriores para se habituar ao seu reflexo no espelho, enquanto percorria as divisões da casa. Agora, eu sabia que tocava num homem mulher e podia perder-me naquela ideia pecaminosa.
Nesse desejo cúmplice, pedi-lhe que me mostrasse cada linha suturada. Por isso, desejei-a, palmilhando as cicatrizes cada vez mais profundas, por possuir um corpo retalhado em muitas partes. E, nesse desejo narcisista, percorri com as minhas mãos o seu peito endurecido, abocanhei uma verdade. À medida que a beijava, o meu corpo enrijecia. Ela sussurrava-me ao ouvido que tinha sido um homem feio, que partia para a pancadaria mal o provocassem, que se algum dia conseguisse voltar atrás me mostraria a sua força atroz. Em cada agressão, eu encontrava um calor intenso, um sabor ácido como sal, um gemido sonante que fazia o meu corpo levantar-se, aberto em duas metades opostas. Adormeci banhado envolto nos seus pecados.
De manhã, perguntei-lhe como me salvaria tomar o corpo de um homem mulher, se isso só aguçava mais o desejo de me transformar. As suas acções confundiam-me. Disse-me que devia saber que estava arrependida do que fizera. Que nos tempos que se seguiram à operação, não encontrou o amor que esperava, só em deus vive esse amor. Um dia, deus falara com ela e lhe dissera, “Isto não és tu, isto é o que o diabo te fez, eu amo-te, conheço-te antes do ventre da tua mãe.” Arrastei-a para fora do meu quarto, não podia suportar aquele engodo, a forma como me levara a querê-la e a destrinçar uma verdade apenas partilhada entre ela e a minha mãe.
Pela noite, não podia deixar de pensar no quanto a minha mãe me tinha atraiçoado ao trazer aquele homem mulher para o meu quarto. Que devia ter percebido toda aquela adulação no primeiro instante. Queria matar a minha mãe, trocar de lugar com ela no sonho e roubar-lhe o ar com a minha almofada. Palmilhei o soalho do corredor, pé ante pé, até ao seu quarto para lhe falar desse desejo.
Queria magoá-la, dizer-lhe que, durante horas, deitado na minha cama, fantasiara com a sua morte e nas minhas fantasias eu era o perpetrador dessas façanhas.
Ao entrar, encontrei-a a dormir entre os lençóis enrodilhados da sua cama. Reparei nas linhas finas do seu rosto, as pálpebras grandes e fundas, o nariz fino de narinas delicadas. Na sua beleza, subsistia uma expressão de inequívoca amargura que jamais seria rasurada. Não a podia matar, ela já estava morta, há muito tempo que decidira morrer.
Notei no centro do tecto um fio branco a pender para os lados. Parecia uma teia de aranha, embora fosse demasiado longo para ter passado despercebido às suas limpezas escrutinosas. Toquei-lhe, sentindo a sua textura leve e extensível. Ao puxá-lo, alongou-se ainda mais nas minhas mãos. O seu comprimento parecia não ter limites. Tornava-se mais denso e parecia dividir-se em outros filamentos, ganhando peso e volume, à medida que o puxava. Senti o impulso de o enredar à volta do corpo, cada vez mais fascinado pela sua maleabilidade. Dei voltas e mais voltas, mas por mais que o fizesse, o fio nunca acabava e ia formando um tecido grosso que se enredava à volta das minhas pernas, do meu torso, e começava a assomar-me pelo pescoço.
Instantes depois, sentia-me confortável no interior daquele casulo, sentia que o meu corpo podia permanecer ali resguardado por semanas, meses a fio, a maturar. O seu calor provocava-me uma sensação de apaziguamento como nunca tinha experimentado antes. Parecia que o meu corpo ia derreter e misturar-se como massa para tomar novas formas. Não estava nada a meu encargo, as coisas apenas aconteceriam assim.
Era como se tivesse chegado a estação do ano certa para se transformarem os corpos, arejarem-se as casas, as ilusões abrir-se-iam em pétalas amplas e perfumadas. Assim senti uma promessa a aterrar sobre a minha nuca.
Através do emaranhado de tecidos, observei a minha mãe a levantar-se da cama com olhos de susto, a boca escancarada como se não pudesse acreditar no que tinha à sua frente. Perguntou-me com uma voz fosca, que parecia vir de dentro de um recipiente, que feitiço era aquele. Depois começou a empurrar o corpo contra a parede e a repetir para ela própria que sonhava, que só podia estar a sonhar.
Disse-lhe que não tinha a certeza, que bem podíamos estar a sonhar, podia ser que fosse um sonho conjunto, de tantas frustrações partilhadas, mas ainda que fosse assim, tinha chegado o tempo do meu corpo transformar-se, era inevitável que acontecesse, já não restava nada que o impedisse.
—Vou-te tirar daí! — berrou ela, ao perceber que transformação se avizinhava.
— Não podes, o casulo está selado, o meu corpo já começou a transformar-se. — E mostrei-lhe os seios redondos que pendiam do meu torso.
Com as próprias mãos, ela tentou abrir uma fenda no casulo e arrancar-me lá de dentro, mas nada funcionava. O meu rosto tomava traços finos, só meus. Os meus ombros estreitavam e, entre as pernas, apareciam filamentos negros que marcavam a púbis.
De repente, o meu coração deteve-se. Olhei para a sua figura estática, majestosa, sempre consciente do quanto a admirava. Diante da transformação, também ela se havia rendido. Por mais que cavasse no tecido do casulo, os seus esforços eram inúteis, não se abria uma fissura que desse passagem às suas mãos para me tirar lá de dentro. O sol baixou, revelando as formas do meu corpo com crueza. A sensação era de puro aconchego, como se estivesse a nascer de novo, no calor do útero materno, sem heranças, sem julgamentos, eu era de novo um ser banhado de possibilidades. Disse-lhe, transformado, “Admira-me, só porque estou aqui!”

Ana Queiroz é filha de um mecânico de aviões e de uma mãe excêntrica que ficava em casa e ajudava os pobres. Cresceu num bairro social onde transitava para a realidade do bairro da lata, onde conheceu, com a sua mãe, histórias de miséria, distúrbios mentais e abusos. O desejo do pai de voar e as histórias que a mãe trazia para casa moldaram o seu desejo de escrever. Dedicou-se durante mais de 15 anos à escrita de documentários e animações como argumentista, enquanto guardava na gaveta estas histórias pessoais.
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