Ozias Filho

catedral

No mundo realmente reinvertido,

o verdadeiro é um momento do falso

Guy Debord

4570 amigos belos e faceiros, príncipes

nos seus territórios retro iluminados

palcos de representação

já não somos unos, já não somos seres

talvez avatares que se desfolham

entre bem ou malquereres

busca-pólos acesos

que caminham no fio de uma rede

e que não desconfiam serem moribundos

(a tela é verdade a tela é conforto

é tela da falácia constante)

o teatro levanta o seu véu por sobre as cabeças

e por um instante, ou por um like,

fotografia de cada minuto perdido,

o espetador é o espetáculo

iluminados pela fantasia que criaram

sob a luz plena de paraísos

chama fria de absolutos universos

cada umbigo é a exata medida das vaidades

cada vez menos a visão do osso e da carne vivas

cada vez mais o osso e a carne ilustradas

cada vez mais o intangível

cada vez menos a visão da rua do asfalto

cada vez mais a realidade aumentada

(a tela é verdade a tela é conforto

é tela da falácia constante)

4570 amigos pindéricos na fogueira

que consome e alimenta e faz girar a roda

que faz mover a engrenagem da rede

que absorve e finge ser alimento, que não sacia

e controla a fortuna que cada um irá receber

no casino que não encerra portas ou janelas

a casa sempre vence

o espetador é o espetáculo

o mais novo modelo de produção em massa

o espetador é esta a massa

sistematizado à frente da catedral

e as luzes estão acesas

e as luzes não descansam nunca

e as luzes trabalham de graça

e as luzes são binárias

e as luzes não reclamam

são candeeiros ocos

e as luzes repetem o que outras luzes dizem

e as luzes espalham o medo

e as luzes são elas próprias o medo

e as luzes vão morrer pelo medo

sozinhas, sempre acesas, luzes opacas

(a tela é verdade a tela é conforto

é tela da falácia constante)

4570 amigos inanimados

4570 amigos algoritimizados

triste ironia, a rede que une na ilusão

e separa pelo corpo

a palavra da tela não é igual ao sopro da garganta

guardámo-la, não se gasta mais saliva

a boca segue deserta

só a visão do palco iluminado é o que interessa

por que a rua se o que mora nos olhos é o mundo inteiro?

por que a rua se o fabricado veste melhor do que o original?

atirar a pedra e esconder-se na nuvem magoa mais que

o murro no estômago, e só custa no lapso de um clique

os olhos da cara sem rosto

somos o espetáculo da nossa própria aparência

negação do que é palpável

se não está na tela, inexiste

somos este tempo não vivido

no óculo iluminado de certezas

(a tela é verdade a tela é conforto

é tela da falácia constante)

na parede da caverna só as sombras da memória

encerram algum conforto longínquo do que éramos

mas pelo buraco desta agulha

o reino dos céus transborda as suas quimeras

4570 amigos andrajos de aparências

4570 amigos minimalistas, presos à mesma tecla

4570 amigos desbotados, mas plenos na cor do pixel

4570 rebentos à espera da morte anunciada

que brilha e nunca dorme, pois, descansar

no tempo do espetáculo

é não existir e, no entanto, nunca

estivemos tão invisíveis

(a tela é verdade a tela é conforto

é tela da falácia constante)

4570 amigos que não suportam o autêntico

o real lhes cheira ao fora de moda

4570 amigos orgulhosamente expostos na ágora

4570 amigos sem a empatia pelos intocáveis

olhar o outro devolve a mesma luz de invisibilidade

e nunca a cegueira transbordou com tanta luz

(do livro Um anjo com a boca pintada de sangue, de Ozias Filho)

***

Ozias Filho, Escritor, Fotógrafo e Editor de livros, nasceu no Rio de Janeiro. Formado em Jornalismo pela Faculdade Hélio Alonso e em Fotografia pela PUC. É pós-graduado em Edição e Novos Suportes Digitais, pela Universidade Católica Portuguesa. Lançou em 2001, pela Editora Alma Azul, o livro Poemas do Dilúvio (Alma Azul Editora). Idealizou e protagonizou na Casa da América Latina (Lisboa), ao longo de uma década, vários projetos: Uma Hora Com os Poetas, Noites em Pasárgada e Neruda com Amor. Foi de 1999 até 2011 o responsável da Editora Vozes em Portugal. Em 2013 publicou, em parceria com o poeta mineiro Iacyr Anderson Freitas, o livro Ar de Arestas; as fotos desta obra estiveram expostas no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, em Juiz de Fora, Brasil. Em 2017, participou, em Lisboa, na Semana da Poesia Ibero-Americana (e na respetiva antologia de escritores, editada para o evento) e na VI Bienal de Culturas Lusófonas, com uma das suas imagens do ensaio Shadowless. As suas últimas exposições são QUASINVISÍVEL, que integrou a iniciativa Passado Presente – Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura e, ainda, em 2019, em A Pequena Galeria, em Lisboa, o ensaio, Por estes dias o mar tem dentes. Como poeta tem editado em Portugal e no Brasil os livros O Relógio avariado de deus (Edições Pasárgada e Texto Território) e Insulares (Livros de Ontem e Editora Jaguatirica). Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Já em 2023 publicou pela Editora Urutau, no Brasil e em Portugal, o livro de poesia, Os cavalos adoram maçãs, e Insanos (Edições Húmus). Em 2025 vai publicar o livro de poemas O avesso da casa (Editora Urutau). Tem participado em vários festivais de literatura, dos quais se destacam FOLIO, Festival Literário Internacional de Óbidos, no Ronda Leiria Poetry;Encontro Ibero Americano de Poesia (Casa da América Latina/Lisboa), Encontro de Escritores Lusófonos (Odivelas), Festival Silêncio (Lisboa), Festival Literário do Dourto; Festival Literário de Ovar; e entre outros, nos Encontros Ibero-Americanos de
Poesia, na Fundação José Saramago. Assina mensalmente a coluna, Quem eu vejo quando leio, para o Jornal Rascunho, no qual fotografa e escreve sobre escritores do universo da língua portuguesa.

Mais sobre o autor: https://linktr.ee/ozias_filho

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