Nuno Hígino


Temos de cair

não há outra solução para a vida

cair da árvore 

cair como caem os tufos

agarrados ao chão

cair como cai a tarde

cair no incêndio da camélia vermelha

cair pétala a pétala

como o fogo quando sobe

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Não vos falo meus filhos

dos fuzilamentos de Goya

falo-vos da avó

que está velhinha

e um dia não muito distante

deixará de estar convosco

Falo-vos dos vossos pais

que um dia deixarão de estar

convosco à mesa,

compreendeis como será triste

não estarmos todos à mesa?

nesse dia de separação chorareis

mas ainda não será o fim

acreditai

Falo-vos de vós

que um dia tereis filhos talvez,

ainda vos lembrais do caminho

dos avós e dos pais?

é o mesmo que ides percorrer

Nessa altura

a avó será uma recordação longínqua

os vossos pais estarão desfocados

na memória

e serão os vossos filhos

a fechar-vos os olhos

na hora derradeira

É assim que a vida funciona

o que tiverdes a viver vivei

o que tiverdes a dizer dizei

se ouvirdes uma música triste

ao cair da tarde cantai

cantai com vontade

louvai o sol

mesmo quando ele fenece

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Cansei-me de andar pelos caminhos

andar pelos caminhos cansa

cansei-me do amor

é o que eu quero dizer

Cansei-me de explicar o poema

e agora o que hei de fazer?

Dizem que o amor não cansa

dizem que os caminhos não acabam

dizem que o poema se explica a si mesmo

diz-se tanta coisa

já não sei em que acreditar

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Ouve o som da água que corre

fecha os olhos

pensa

pode ser o princípio de tudo

ou pode ser Deus a guiar a água

para o pé tenro do milho

Ouve os passos da manhã

a folhagem sob os pés

do caminhante

pergunta

quem assim caminha sobre o mundo?

Repara no homem

sobre um cortador de relva

ele segue pela berma da estrada

sem pressa

acredita

ele sabe que no céu há prados imensos

Ouve o canto do pássaro

como quem ouve o silêncio

Deus está perto de ti,

se estenderes a mão

quase podes senti-lo

sim, como sentes a ausência

de quem amas

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Aproximamo-nos do mosteiro

já se ouve o espírito das águas procuramos na floresta

um lugar para exilar o medo

aqui ninguém nos vai odiar

Também a morte é persistente

e caminha ao nosso lado

tão nítida como as águas

A árvore maior deixou cair

as primeiras folhas

e no mosteiro já ninguém habita

todos se foram

as águas falam do que é antigo

As águas são íntimas como a morte

o espírito das águas fala nas águas

vê, já estamos próximos do mosteiro

desabitado

Temos a tristeza para repartir

sim

repartimos a tristeza

como repartimos o pão

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Nuno Higino Pereira Teixeira da Cunha nasceu a 16 de Julho de 1960 em Felgueiras, Porto. Começou a actividade pastoral no Seminário do Bom Pastor como educador e professor de português, entre 1984 e 1988. Entre 1988 e 2001 foi pároco em Marco de Canaveses, período durante o qual foi construída a igreja de Santa Maria com projecto de Álvaro Siza. Em 2001 foi estudar Filosofia para a Universidade Comillas-Madrid. Em 2003 matriculou-se num programa de doutoramento em Madrid na Faculdade de Filosofia da Universidade Complutense. Na sua investigação, concluída em 2007, procurou interpretar os desenhos de Álvaro Siza a partir do pensamento da desconstrução do filósofo francês Jacques Derrida.
Renunciou ao sacerdócio em 2005. Desde 2008 até ao presente, foi professor de várias disciplinas na área das ciências humanas na
Universidade Fernando Pessoa. Actualmente é professor de Estética e História da Arte na mesma Universidade. É professor de História da Cultura e das Artes, desde o ano lectivo 2024-25 no Colégio dos Salesianos, Porto. Fez parte da equipa de trabalho da Casa da Arquitectura entre 2007 e 2014. Foi responsável, entre 2018 e 2022, pela programação da Casa das Artes de Felgueiras. Entre 2022 e 2023 trabalhou na Cooperativa Árvore. É responsável editorial e comercial, desde 2004 até ao presente, da Editora Letras e Coisas.
É Provedor da Arquitectura desde Maio de 2024. Tem vários títulos publicados na área do ensaio, da poesia e da literatura infanto-juvenil:


Ensaio


O Terceiro Anjo. José Rodrigues: anjos em desconstrução, Porto, Campo das Letras, 2007;
Álvaro Siza: Desenhar a hospitalidade, Matosinhos, Casa da Arquitectura, 2010;
Álvaro Siza. Anotações à margem, Paris, Nota de Rodapé, 2015;
Assim e assado. Escritos sobre estética da arte, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2018.
Poesia
No silêncio da terra, Porto, Campo das Letras, 2000;
Onde correm as águas, Porto, Campo das Letras, 2003;
Talvez Deus se tenha enganado, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2004;
O animal eólico do corpo, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2007; Tradução para castelhano pela Ed.
Amargord, Madrid, 2014;
Mãe. E leva os filhos nos olhos como se os levasse pela mão (com desenhos de Alberto Péssimo) Leça da
Palmeira, Letras e Coisas, 2011;
Rios sedentos, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2014;
A mão do pai (com desenhos de Isabel Amaral), Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2016;
O vazio do mundo, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2017;
Pharmacia, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2021;

A Casa e a Mesa. Pequeno livro da Amizade I, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2024 (fora do mercado);
A Abundância. Pequeno livro da Amizade II, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2024 (fora do mercado);
Um insecto no ouvido (Antologia), Maia, Officium Lectionis, 2024.

Literatura infanto-juvenil


A mais alta estrela. Sete histórias de Natal, ilustrações de José Maia, Marco de Canaveses, Cenateca,
1998;
A libelinha que tocava flauta, ilustrações de José Rodrigues, Vila Nova de Cerveira, Associação Convento
de S. Payo, 1999;
A rainha do país dos Frutos, ilustrações de José Emídio, Marco de Canaveses, Cenateca, 2000;
O menino que namorava paisagens e outros poemas (poesia), ilustrações de José Emídio, Porto, Campo
das Letras, 2001;
A anja de hálito azul, ilustrações de José Rodrigues, Marco de Canaveses, Cenateca, 2002;
O Senhor Outono e o Lagarto amigo das palavras, ilustrações de Márcia Luças, Porto, Campo das Letras,
2002;
Todos os cavalos e mais sete (poesia), ilustrações de Álvaro Siza, Marco de Canaveses, Cenateca, 2003;
Reeditado pela Nota de Rodapé em 2015.
O crescer das árvores, ilustrações de José Emídio, Porto, Campo das Letras, 2003;
Onde dormem os pássaros?, ilustrações de Armanda Passos, Lisboa, Caminho, 2006;
A maçã vermelha. Viagem à infância de Sophia de Mello B. Andresen, ilustrações de José Emídio, Leça da
Palmeira, Letras e Coisas, 2007;
O meu primeiro livro de viagens, ilustrações de José Rodrigues, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2008.
Versos Diversos (poesia), ilustrações de Ana de Castro, Vila Nova de Gaia, Trinta por uma Linha, 2008;
O cavalo que engoliu o sol. Histórias da vida de S. Paulo, ilustrações de Emerenciano, Leça da Palmeira,
Letras e Coisas, 2008;
A sombra do gafanhoto. Como João Baptista deixou de comer gafanhotos, ilustrações de José Emídio,
Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2010;
A cerejeira que floriu em Maio. Vida e martírio de Santa Quitéria, ilustrações de José Emídio, Leça da
Palmeira, Letra e Coisas, 2010;
A noite das três luas. Nuno Álvares Pereira, ilustrações de José Emídio, Lisboa, Editoral Paulinas, 2010;
O peixe dourado. História de S. Pedro pescador de homens, ilustrações de José Maia, Felgueiras,
Paróquia de Torrados, 2011;
O Jardim de Helena, ilustrações de José Rodrigues, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2011;
Criança todos os dias (poesia), ilustrações de José Emídio, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2011;

Daqui e do mar, eu vou-te contar (poesia), ilustrações de Eduarda Leitão, Leça da Palmeira, Letras e
Coisas, 2013;
O casamento de Pedro e Inês de Castro, ilustrações de Alberto Péssimo, Leça da Palmeira, Letras e
Coisas, 2013;
Histórias de Natal, ilustrações de Paula Gaspar, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2013;
A trote e a galope. Antologia de poesia para a infância, gravuras de Alberto Péssimo, Leça da Palmeira,
Letras e Coisas, 2017;
Águas de infância, ilustrações de Joana Antunes, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2019;
O Livro de Benício, ilustrações de Kassandra Júlio, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2021;
Abril. 25 Poemas, ilustrações de Artur Moreira, Leça da Palmeira, Letras e Coisas, 2024;

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