João Melo

CRÓNICA VERDADEIRA DA LÍNGUA PORTUGUESA

“A língua portuguesa é um troféu de guerra”

Luandino Vieira

A poetisa portuguesa

Sophia de Mello Breyner

gostava de saborear

uma a uma

todas as sílabas

do português do Brasil.

Estou a vê-la:

suave e discreta,

debruçada sobre a varanda do tempo,

o olhar estendendo-se com o mar

e a memória,

deliciando-se comovida

com o sol despudorado

ardendo

nas vogais abertas da língua,

violentando com doçura

os surdos limites

das consoantes

e ampliando-os

para lá da História.

Mas saberia ela

quem rasgou esses limites,

com o seu sangue,

a sua resistência

e a sua música?

A libertação da língua portuguesa

foi gerada nos porões

dos navios negreiros

pelos homens sofridos que,

estranhamente,

nunca deixaram de cantar,

em todas as línguas que conheciam

ou criaram

durante a tenebrosa travessia

do mar sem fim.

Desde o nosso encontro inicial,

essa língua, arrogante e

insensatamente,

foi usada contra nós:

mas nós derrotámo-la

e fizemos dela

um instrumento

para a nossa própria liberdade.

Os antigos donos da língua

pensaram, durante séculos,

que nos apagariam da sua culpada consciência

com o seu idioma brutal,

duro,

fechado sobre si mesmo,

como se nele quisessem encerrar

para todo o sempre

os inacreditáveis mundos

que se abriam à sua frente.

Esses mundos, porém,

eram demasiado vastos

para caberem nessa língua envergonhada

e esquizofrénica.

Era preciso traçar-lhe

novos horizontes…

Primeiro, então, abrimos

de par em par

as camadas dessa língua

e iluminámo-la com a nossa dor;

depois demos-lhe vida

com a nossa alegria

e os nossos ritmos.

Nós libertámos a língua portuguesa

das amarras da opressão.

Por isso, hoje,

podemos falar todos

uns com os outros,

nessa nova língua

aberta, ensolarada e sem pecado

que a poetisa portuguesa

Sophia de Mello Breyner

julgou ter descoberto

no Brasil,

mas que um poeta angolano

reivindica

como um troféu de luta,

identidade

e criação.

Crónica verdadera de la lengua portuguesa

“La lengua portuguesa es un trofeo de guerra”

Luandino Vieira

A la poetisa portuguesa

Sophia de Mello Breyner

le gustaba saborear

una a una

todas la sílabas

del portugués de Brasil.

Estoy viéndola:

suave y discreta,

inclinada sobre el balcón del tiempo,

su mirada extendiéndose con el mar

y la memoria,

disfrutando conmovida

del impúdico sol

ardiendo

en las vocales abiertas de la lengua,

violentando con dulzura

los sordos límites

de las consonantes

y ampliándolas

más allá de la Historia.

¿Pero, sabría ella

quién rasgó esos límites

con su sangre,

su resistencia

y su música?

La liberación de la lengua portuguesa

fue engendrada en las bodegas

de los barcos negreros

por los hombres sufridos que,

extrañamente,

nunca dejaron de cantar,

en todas las lenguas que conocían

o crearon

durante la tenebrosa travesía

del mar sin fin.

Desde nuestro encuentro inicial,

esa lengua, arrogante

e insensatamente,

fue usada contra nosotros

pero nosotros la derrotamos

y la hicimos

instrumento

de nuestra propia libertad.

Los viejos dueños de la lengua

pensaron, durante siglos,

que nos borrarían de su culpable conciencia

con su idioma brutal,

duro,

cerrado sobre sí mismo,

como si en él quisieran encerrar

para nunca jamás

los increíbles mundos

que se abrían frente a ellos.

Esos mundos, sin embargo,

eran demasiado vastos

para caber en esa lengua avergonzada

y esquizofrénica.

Fue necesario trazarle

nuevos horizontes…

Primero, entonces, abrimos

de par en par

las capas de esa lengua

y la iluminamos con nuestro dolor;

después le dimos vida

con nuestra alegría

y nuestros ritmos.

Nosotros liberamos la lengua portuguesa

de las amarras de la opresión.

Por eso, hoy,

podemos hablar todos

unos con otros,

en esa nueva lengua

abierta, solariega y sin pecado

que la poetisa portuguesa

Sophia de Mello Breyner

juzgó descubrir en Brasil,

pero que un poeta angoleño

reivindica

como un trofeo de lucha,

identidad

y creación.

ARTE POÉTICA 2020

(Da importância dos espantalhos)

A poesia – o que será?

Uma visão?

Ou simplesmente uma narrativa corrompida

pela absoluta impossibilidade de

salvação e, por isso,

ávida

de auto-exibicionismo inútil: rimas                                    

fosforescentes, quebras de ritmo

sem sentido, espaços

impassíveis como espantalhos

para assustar pássaros?

A morte e seus

símiles – tenho de dizê-lo –

estão lá fora

à espera de quem não sabe construir espantalhos…

Arte poética 2020

(De la importancia de los espantapájaros)

La poesía – ¿qué será?

¿Una visión?

¿O simplemente una narrativa corrompida

por la absoluta imposibilidad de

salvación y, por eso,

ávida

de auto-exibicionismo inútil: rimas

fosforescentes, cortes de ritmo

sin sentido, espacios

impasibles como espantapájaros

para asustar aves?

Las muertes y sus

símiles – he de decirlo –

están allá afuera

a la espera de quien no sabe construir espantapájaros…

Impele-me um breve vulcão no centro do estômago: elimino o torpor dos dedos, afino os dois olhos misteriosos, flexiono os músculos luzidios, certo da minha vitória retumbante. Já oiço o tropel festivo dos tambores, o alegre canto dos chifres enfunados. Talvez mulheres venham derramar-me os seus corações poderosos. Mas de súbito, sem saber como, vou à lona, surpreendido pelas novas arestas do poema. Ergo-me. E continuo à procura das palavras eternas, aquelas diante das quais se curvam os homens.

Me impele un breve volcán en el centro del estómago: elimino el letargo de los dedos, afino ambos ojos misteriosos, flexiono los músculos relucientes, seguro de mi retumbante victoria. Ya oigo el festivo tropel de los tambores, el alegre canto de los cuernos engalanados. Tal vez las mujeres vengan a derramar en mí sus corazones poderosos. Pero de súbito, sin saber cómo, caigo derrotado, sorprendido por las nuevas aristas del poema. Me incorporo. Y sigo buscando las palabras eternas, aquellas ante las que se inclinan los hombres.

João Melo nasceu em 1955, em Luanda (Angola), onde fez os estudos primários e secundários. Estudou Direito em Coimbra (Portugal) e em Luanda (Angola), licenciou-se em Jornalismo em Niterói (Brasil) e fez o mestrado em Comunicação e Cultura no Rio de Janeiro (Brasil). É membro fundador da União de Escritores Angolanos e da Academia Angolana de Literatura e Ciências Sociais. De igual modo, é membro-correspondente da Academia de Letras do Brasil.
Como escritor, publicou até agora 25 livros, entre poesia, contos, romance e ensaios. Além de Angola, foi editado no Brasil, Cuba, Espanha, Estados Unidos, Itália, Portugal,Reino Unido e Tunísia. Além de vários outros prémios, foi-lhe atribuído em 2029 o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola, categoria de literatura.

Leave a comment